Podes fazer sair a seu tempo as constelações, ou conduzir a Ursa com seus filhos?
Hoje é Dia de Reis e o dia do astrólogo. Rezem por mim.
Sempre que chega este dia, lembro de alguns “colegas” que resolvem dizer que, não, dia de Reis não é dia do astrólogo, bibibi bobobó; não se preocupem, o padroeiro dos asnos é S. Francisco de Assis, no dia 4 de outubro eu dou parabéns a vocês.
O Pedro Sette-Câmara fez uma série de stories sobre simbolismo e literatura no Instagram. Eu escrevi uma resposta e postei. Eu sei que deveria postar o que ele escreveu antes, mas não sei se ele salvou e não vou procurar. Então, um resumo: ele disse que muitas obras não têm simbolismo nenhum e que a obsessão por encontrar símbolos em todo texto é ruim.
Eu: O Instagram disse-me: “De onde vens tu?”.
Andei nos stories — disse eu — e passeando pelos textos do Pedro Sette sobre simbolismo.
Não, a paródia é besta, e não quero ser Satanás, mas pensei em ser o advogado do Diabo — escrever um longo texto comentando tudo o que ele escreveu, etc. O problema é que as redes sociais são do Príncipe deste mundo, e imagino os prováveis efeitos do texto: a) quase ninguém entenderia nada, b) se formariam torcidas, e c) a burrice geral cresceria.
Então, vai uma versão curtinha. O disclaimer é que que gosto sinceramente do Pedro e, bom, como vai ficar claro abaixo, ele está certo em muita coisa.
Existem três tipos de “simbolismo” (entre aspas, as definições e distinções precisas ficaram lá naquele texto que não vai existir): a), o simbolismo oculto; b) o simbolismo explícito; c) o simbolismo inconsciente ou involuntário.
O Pedro está tratando de a) e b); eu normalmente falo do c), com exceções (no meu grupo fechado, fiz quase um ano de lives tratando do b) na Divina Comédia; na palestra do Instituto Hugo de S. Vítor, dei uma palestra sobre o mesmo tipo nos Lusíadas).
O tipo a) é raro e normalmente chato. Autores que escrevem cifrado quase nunca são interessantes, porque se destinam a outras pessoas que não eu (a arte em geral pressupõe um público, mesmo que seja um público restrito).
Um exemplo não-chato é o verso 1 do Canto VII do Inferno (Divina Comédia, Dante), em que Pluto grita “Pape Satàn, pape Satàn aleppe” para Dante e Virgílio. É algo obviamente hostil; é em tese inteligível (ao menos para Virgílio, como os versos seguintes deixam claro), mas o que significa… bom, até hoje ninguém bateu o martelo.
O tipo b) é importante, para o leitor moderno, em obras de épocas/culturas em que essas coisas eram claras. A mania de Camões de dizer a data com imagens celestes; as descrições obviamente “médicas” de Chaucer; o Deus de Milton enviando os anjos para fazer o Cosmos se mover de modo a a transmitir suas influências más aos seres humanos; o esquema “9+1” dos três Cânticos de Dante, e a diferença de tom em círculos/patamares/esferas de acordo com a esfera celeste correspondente; nada disso era oculto, cifrado, ou difícil de entender.
Por exemplo, o leitor de hoje pode se perguntar por que, n’A Comédia, o círculo da fraude é dividido no mesmo número de bólgias que o número total dos círculos, por que eles ganham diabinhos malcriados como companheiros, etc; um sujeito da Itália de Dante identificaria o teor “mercurial” do círculo imediatamente.
Não entender isto pode fazer a pessoa não entender muita coisa — ou mesmo nada — de algumas obras, e não só literatura. Hieronymus Bosch, por exemplo, se inspirava em tratados de medicina; as caras feias parecem só caras feias sem isso.
É claro, por outro lado, que muitas obras simplesmente não têm estas coisas, e não são menores por esta “ausência”.
Ao contrário, há obras que (desculpem) são fracas por causa disso. Tenho as Crônicas de Nárnia aqui, li alguns dos livros, tanto sozinho quanto para meus filhos, mas o uso dos símbolos astrológicos pelo C. S. Lewis poderia ser mais hábil (ele confunde planetas com os deuses gregos do mesmo nome; aí enche de símbolos “solares” o livro que deveria ser de Júpiter. Nem lembro mais da associação entre os planetas e os livros, teria de ver os vídeos do Michael Ward de novo).
Sinceramente, cavucar obras procurando simbolismo “escondido” pelo autor é tcholice. Não tem nada mais soporífero que discussões assim, em que cada objeto de uma cena tem um simbolismo que só os mais inteligentes entendem. Imagino as mesmas pessoas discutindo os brocados e a abundância de cores da Roupa Nova do Imperador.
O tipo c), no entanto, é de natureza diferente. Eu já falei sobre isso algumas vezes. Em várias obras, há personagens, cenas, objetos, acontecimentos, etc, que evocam planetas, casas, signos… aparentemente, sem que o autor tenha querido inserir nada disso nela.
Isso pode, com reservas, ser interessante para entender melhor uma obra — desde que não substitua a própria obra. Mas é relevante mesmo para quem quer estudar o simbolismo; é usar a literatura para estudar os símbolos, não o contrário.
A explicação que eu tenho para este “fenômeno” é que a realidade, de certo modo, é assim: as coisas têm determinadas formas mais comuns e descrevê-las assim as torna mais “naturais”, mais fáceis de serem identificadas. Os símbolos (não apenas astrológicos) traduzem aspectos do mundo real.
Uma história que trate de um ciclo muitas vezes se organiza em doze etapas; trios tendem a ter “dinâmicas internas” diferentes de quartetos, septetos, etc.; personagens muito marcantes parecem ter comportamento e/ou aparências que podem ser descritas bem (inclusive prevendo algumas atitudes e situações) pelo simbolismo de planetas em signos.
Lembrando de cabeça exemplos de que já tratei, os primeiros capítulos de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” usam imagens, na sequência correta, dos sete planetas; Tanto “Moby Dick” quanto “Don Quijote” começam com imagens claramente saturninas e terminam com imagens lunares (se você não vê nada lunar num ser redondo, branco e enorme no meio do mar, ou em um cavaleiro chamado “De la Blanca Luna”, não posso fazer nada por você); os eventos do começo do “Senhor dos Aneis” se desenvolvem na ordem das casas celestes…
Julien Sorel é um personagem obviamente mercurial; Otelo, marcial; Próspero, saturnino.
Nada disso (OK, quase nada; talvez Shakespeare tenha pensado num personagem saturnino, mesmo) é intencional. Nada disso foi pensado desta forma pelos autores… mas estão lá.
Quanto disso “ajuda a ler”? Bom, entre “quase nada” e “até que um pouco”, se o leitor a) entende o suficiente dos símbolos para eles esclarecerem, em vez de obscurecerem, a leitura, e b) não TROCAR a leitura por “interpretação simbólica”.
Como eu disse, Julien Sorel é obviamente mercurial, mas Stendhal nunca parou e pensou “agora preciso escrever um livro sobre Mercúrio”, nem muito menos “vou enfiar Mercúrio aqui e só os mais inteligentes vão perceber”. “Mercurial” traduz um padrão geral de comportamento, mas — assim como pessoas — nenhum personagem é só isso.
Alguém me objetou, ao ler o texto acima, que Sorel (d’O Vermelho e o Negro) sonhava com glorias militares, etc. Mas ele não tem nada de marcial; ao contrário, quando acontece algum evento violento, ele é sempre quem sofre. E, bom, ele é “combusto” por um Sol caído (Napoleão); está sempre tramando coisas, é estudioso, articulado, trabalha sempre como “preceptor” de alguém, pensa em tudo em termos de vantagem ou dificuldade, inclusive os afetos… As mercurial as it gets.
Já pensei, de molecagem, em fazer textos longos, sérios, metendo simbolismos idiotas onde eles não existem. Mas ninguém ia entender a piada.
Quantos anos você tinham quando prestaram atenção na letra de “A Festa de Santo Reis”, do Tim Maia e perceberam que ele está reclamando dos festeiros levarem na mão grande coisas dos outros quando vão cantando de casa em casa?
“Se deixar com eles / eles levam até os bodes / é os bodes da gente / é os bodes, méee”
Depois reescrevo a história dos golfinhos; contei nos stories, mas só de reler doeu os olhos. Linda história, texto de bosta. Fica para a próxima.
é os bodes, méee.