Boa parte do aprendizado em astrologia é pular da repetição de técnicas e aforismos para o entendimento dos princípios.
O processo é semelhante ao de qualquer outro ofício ou arte prática.
Ninguém aprende a cozinhar vendo um cozinheiro discorrer sobre as qualidades dos alimentos, os efeitos que cada um tem no prato, sobre o valor nutricional, como funciona o processo de cozimento, etc. A pessoa entra na cozinha e repete, repete, repete, e estas coisas começam a ficar mais claras aos poucos.
Ou: ninguém aprende a lutar tendo aulas de física clássica, embora um mestre saiba — mesmo que não expresse nestes termos — utilizar alavanca, aceleração, mudanças de direção, aceleração, impulso, etc, de forma harmoniosa e criativa. Seja no jiu-jitsu brasileiro ou no Kung Fu Shaolin do Norte, a gravidade é uma inimiga do iniciante e uma aliada do mestre, mas uma exposição racional do princípio por trás disso não transforma um no outro.
Então, eu entendo que alguns conceitos astrológicos, mesmo aparentemente simples, são difíceis de entender e incorporar… mas alguns são mais difíceis que outros.
Em astrologia, isto pode ser complicado porque alguns princípios esbarram em preconceitos e distorções vindas de outras áreas.
Um exemplo muito bom é a classificação comum de planetas em benéficos e maléficos.
É relativamente fácil decorá-la: os maléficos são Saturno (o grande) e Marte (o pequeno); os benéficos são Júpiter (o grande) e Vênus (a pequena); os outros três variam conforme a configuração de cada um (e do autor/assunto; Mercúrio muitas vezes é considerado maléfico em termos médicos).
Não importa o quanto eu os espanque (nem a força com que o faça), alguns alunos têm imensa dificuldade de passar desta classificação esquemática para os princípios que lhe dão sentido. É como se o aluno de kung-fu levasse um boneco de treino para um campeonato, ou um aprendiz de cozinheiro que, quando em dúvida se o prato está pronto ou precisa ficar mais um tempo no fogo, corta mais um aipo.
O braço está cansado, então vamos ver se um texto surte mais efeito que bordoadas.
- Os planetas são símbolos, postos na abóbada celeste por Deus, de sete modalidades ou variedades “fundamentais” que estão em todas as coisas, e segundo as quais elas podem ser classificadas. Ou seja, tudo tem algo de marcial, de jovial, etc, mas algumas coisas são claramente solares, e assim por diante.
Bem, Deus não criou nada mau em si. Tudo no mundo é bom por princípio, embora possa se corromper ou degradar.
Ou seja, nenhum dos planetas é maléfico neste nível. As qualidades, seres, situações, alimentos, partes da vida, etc (a lista é longa) significadas por Marte são tão benéficas quanto qualquer outra.
O problema é que algumas criações são mais agradáveis que outras. As casas de swing, os bares, as bocas de fumo, as lanchonetes de fast-food e as lojas de doce todos ganham muito mais dinheiro, e costumam estar mais cheios, que os mosteiros porque queremos o que é agradável mesmo que seja ruim para nós.
Por outro lado, é raro que aspectos da vida tão necessários — e tão obviamente bons — como acordar cedo, fazer jejum, trocar o cigarro de maconha pela academia (ou pela escola), receber um esporro bem dado quando fazemos bobagem, haver policiais que impeçam que simplesmente esmaguemos a cabeça de gente chata, filas que organizem a entrada em algum lugar, ou a sensação de dor ao pisar em um espinho sejam cantados em verso ou prosa.
Pois é. Saturno e Marte simbolizam as facetas mais desagradáveis da vida, enquanto Vênus e Júpiter, os mais agradáveis. O Sol, a Lua e Mercúrio, por motivos diferentes, podem significar uma combinação de maravilhas ou nojeiras.
No entanto, num nível mais baixo, nas interações entre os seres, o mal existe. Ele está ligado à degradação da natureza das coisas. Uma lâmina é uma lâmina, e não há nada de mau nela, mas ela pode ser afiada ou enferrujada, pode fazer a barba ou matar uma criança.
Como se decide, em astrologia, se as significações dos planetas são — neste sentido — boas ou más? Por algo chamado dignidade essencial. Sem entrar em detalhes técnicos: em alguns lugares do Zodíaco, os planetas se expressam de modo mais conforme à própria natureza essencial, e em outros, de modo mais contrário, mais degradado.
Ou seja, a essência que associamos a Marte pode se manifestar, por exemplo, como um nobre soldado ou um ladrão violento, e isto é simbolizado pela posição de Marte nos diferentes signos e nas diferentes partes dos signos.
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Aí chegamos ao título da newsletter. Saturno pode ser o Grande Benéfico, embora nunca seja o grande gostoso.
Se ele já tinha uma péssima reputação antigamente, hoje em dia tudo o que é saturnino é abominável. Escondemos a morte das pessoas, disfarçamos a velhice, maquiamos a doença. Milhares de esquemas para ganhar muito dinheiro e largar a rotina, a vida “comum”, são anunciados o tempo todo. Tudo quer ser rápido, fácil, mole.
O efeito é que nos tornamos seres sem Saturno. Ninguém amadurece; ninguém tem espinha dorsal, todos têm medo de desagradar a si e aos outros. O planeta da lentidão, da dificuldade, da velhice, dos limites, mas também da perseverança, da constância, da temperança, do auto-controle parece não existir mais, nem na comida. As coisas estão cada vez mais doces.
E ele nunca foi tão necessário.
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Saturno é um dos personagens mais importantes da peça “Prometeu Acorrentado”, de Ésquilo. Calma, meu amigo, não se agaste, eu também li. Eu sei que ele não aparece no texto em momento algum.
Mas seu filho e sucessor aparece, numa descrição bastante eloquente do quanto Júpiter pode ser terrível se não for contido; a expansão jovial não tem limites. O que falta ao novo rei são as qualidades associadas ao anterior.
Em Ésquilo — como na nossa sociedade — Saturno se destaca pela ausência.
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Como hoje é quarta-feira, dia de Mercúrio: a ligação entre o planeta associado a Cronos e o associado ao bobo da corte é difícil de captar à primeira vista. Por que Mercúrio e Saturno têm as mesmas qualidades? Marte e o Sol serem quentes e secos, ou Vênus e a Lua serem frias e úmidas, faz algum sentido, mas um evoca irresponsabilidade, frivolidade, o outro gravidade e peso. Qual é a ligação?
Não vou discorrer sobre as naturezas dos planetas; só vou mencionar um mito ume a história. Loki, o deus nórdico, era claramente mercurial.
Ele era um dos Æsir, mas não era filho de deuses.
Seu pai era Fárbauti, um jötunn. Loki era um gigante de gelo, só que pequeno (nem todo jötunn era gigantesco).
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Fiquem com Deus e até semana que vem.