Existem uns objetos em astrologia que são mais difíceis de entender.
As partes — chamadas árabes porque voltaram a ficar populares depois de sua reintrodução, a partir de autores que escreviam em árabe — são pontos matemáticos calculados a partir de posições de planetas, casas, ou outras partes.
Elas funcionam como “destilação” de assuntos. A relação entre os pontos a partir dos quais são calculadas nos dá uma ideia do que significam.
A mais conhecida de todas é a chamada “Parte da Fortuna” (alguns, inspirados pelo tarô, usam a expressão “Roda da Fortuna”, o que é impreciso… mas cujo significado não está tão longe do real). Vale a pena ver como é construída, porque isso influencia no que ela simboliza.
Ela é obtida subtraindo-se a posição do Sol da posição da Lua e projetando-se o resultado no Ascendente.
Ou seja, pegamos a Lua — astro cuja forma e tamanho dependem do Sol, cujo ciclo parece ser determinado pelo Sol, cujo simbolismo parece derivar em boa medida das suas relações com o Sol — e tiramos dela o Sol.
O que sobra? A vontade de luz, a intenção de se encher, a fome (aliás, meu professor a chama de “Parte da Fome”). Ela captura uma gama de significados específica da Lua, “localiza” ou “destila” uma parte de todas as significações possíveis.
E esse resultado é posto no Ascendente. É “a fome” do Ascendente, ela simboliza essas coisas de quem é significado pelo Ascendente.
Não é difícil perceber que as intenções da Lua — as nossas — são contraditórias. Quanto mais se afasta do Sol, mais cheia fica; quando mais se aproxima da fonte da luz, mais desaparece. E ela é, afinal das contas, o astro mais próximo de nós em mais de um sentido. Afinal, é o único de quem vemos o rosto.
É daí que vem o nome “fortuna”, que não quer dizer “posses materiais em abundância” aqui; são as desventuras da vida, o que nos acontece ao longo do caminho — o que acontece conosco, um pouco por nossa causa, um pouco porque o mundo é grande e também anda, sem nos perguntar para onde deve ir.
É engraçado que algumas pessoas defendam a associação a riqueza, quando a primeira coisa que fazemos para calculá-la é retirar a fonte da abundância, o Sol.
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A Fortuna é a mais famosa das partes; ela é também a mais famosa de um grupo seleto, chamado “partes-chave”, “partes fundamentais” ou “partes herméticas”.
Cada uma delas está associada a um dos sete planetas.
Além da Fortuna (associada à Lua), existem:
A parte da Necessidade ou Desespero (associada a Mercúrio);
a parte do Amor (Vênus);
a parte do Espírito (Sol);
a parte do Valor ou Coragem (Marte);
a parte da Vitória (Júpiter);
a parte do Cativeiro e Fuga do Cativeiro (Saturno).
Assim como com a Fortuna, seu nome pode ser enganoso, mas está, de certa forma, associada ao significado delas. A parte de Mercúrio, por exemplo é chamada de Necessidade ou Desespero porque o aspecto mercurial mais obviamente associado a ela é a necessidade (ou o desespero) da escolha.
Estas partes são usadas, em astrologia natal, de modo um pouco diferente que as demais: como estão associadas aos sete planetas, elas são calculadas para todos os mapas, e servem — caso estejam fazendo algo interessante (conjuntas ou opostas entre si, conjuntas ou opostas a um planeta, conjuntas à cúspide de uma casa) — como “posições alternativas” do planetas (e podem ter a sua significação própria, é claro).
Mas eu não quero falar delas hoje; o assunto de hoje são outras partes.
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Como se analisam as partes “normais” (ou seja, todas as outras)?
Há centenas delas. Se o astrólogo resolver calcular todas para todos os mapas, sua vida vai ficar bastante interessante.
A ideia é que as partes devem ser calculadas e analisadas quando se investiga um assunto relacionado a elas.
Se a investigação é de épocas boas para cultivar melões, a parte dos Melões (não é piada) pode ser importante.
Como se analisa?
Após o cálculo, caso a parte esteja em algum ponto relevante (conjunção/oposição com algo relevante), isso faz parte da análise. Mas não para aí: o regente do signo em que a parte está (o que se chama de dispositor da parte) simboliza o assunto que ela significa (ou seja, se a parte dos Melões está em Touro, Vênus, regente de Touro, significa os melões naquele mapa).
Então, a análise precisa levar em conta o que este planeta está fazendo.
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Nesta newsletter, eu quero analisar duas partes árabes relacionadas a sucesso no mapa do Johnny Cash.
São duas partes com as quais eu trabalhava há alguns anos e acabei deixando de lado (obrigado ao V. L. pela lembrança — não digo seu nome completo porque não sei se você quer a exposição).
As duas são a parte da Vocação e a parte da Fama (também conhecida como “O Trabalho a Ser Feito”).
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A parte da Vocação é Meio-Céu + Lua - Sol. Ou seja, é a “Parte da Fortuna da Carreira”. O significado dela é, é claro, a “fome profissional”.
A parte da Fama é Ascendente + Júpiter - Sol. As ambições de elevação (Júpiter) menos a Luz (o Sol) — fica o “Trabalho a ser Feito” (para ascender, para subir), outro nome para a parte.
Este é o mapa do Johnny Cash.
A parte da Vocação está em 27 56 de Leão, regida pelo Sol.
Em primeiro lugar, ela está em um lugar importante.
Seu antiscion está exatamente sobre a cúspide da casa dois (e, portanto, oposto à oito).
Em outra pessoa, isso poderia significar vocação com finanças… mas não parece ser o caso, aqui. O que a parte da Vocação parece estar enfatizando é o outro significado possível da casa dois, o que ingerimos — e, não, não estou falando de bife com batatas-fritas.
E o que o Sol está fazendo? Bom, na doze, em Peixes, conjunto a Mercúrio, que rege a sete, na própria queda e no próprio detrimento, na exaltação do regente da dois, ele parece estar anunciando todo o auto-sabotamento mercurial envolvendo ingestão de substâncias e mulheres (assunto de casa sete) que o nativo fez na vida. Ele rege a seis, a casa dos problemas que nos afligem sem que tenhamos culpa (como as doenças).
Além disso, a parte da Vocação se opõe à oito, a casa da morte, e o Sol está na doze, casa das prisões, dois assuntos bastante comuns (e muito mais comuns nele que no restante da própria geração) na sua obra.
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A parte da Fama cai em 2 57 de Virgem, regida por Mercúrio.
Ela se opõe de forma quase exata a Marte — o regente da oito, Morte — mas também está próxima o suficiente de uma oposição ao próprio regente, Mercúrio, e ao Sol.
O “Trabalho a Ser Feito”, aparentemente, é combater suas tendências auto-destrutivas e a morte. Além disso, como Mercúrio dispõe a parte, é como se houvesse uma oposição de “Mercúrio” a Mercúrio/Sol. Suas tendências autodestrutivas, mesmo as associadas a mulheres, seriam combativas por uma mulher; o amor por June Carter o fazia, na medida do possível, andar na linha.
Não parece muito longe do alvo.
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No próximo texto, quero dar uma olhada no papel das partes da morte (sim, existem duas): talvez na morte do próprio Cash.
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Republiquei um livro.
“Uma História de Dois Papas” analisa a época da renúncia do Papa Bento XVI e a eleição do Papa Francisco.
Revisei tudo, reescrevi quase inteiramente dois capítulos, e acrescentei três (um anexo com termos usados no livro, pra facilitar a compreensão do texto a quem não é astrólogo; uma horária sobre a eleição; e um capítulo sobre a morte do Papa Emérito).
Este e outros livros podem ser encontrados aqui, aqui, e aqui (ainda não pus justamente este, ponho em breve; é a lojinha do meu Patreon).
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Lembrete dos nossos patrocinadores: meus cursos de Mecânica Celeste Básica, de Estrelas Fixas, e o primeiro módulo do meu curso de Astrologia Natal já estão disponíveis.
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Um abraço e até a próxima.